31 julho 2011

Deu-lhe uma sede de sol, assim sem mais nem menos, uma sede forte, exigente de saciação imediata, abaixou-se pendendo de lado, desceu a meia da canela da perna, ali estava a sede na pele da perna direita, quase no osso que desenha um monte no fim da canela, estava ali concentrada na forma de coceira, de nada adiantou a fricção, os esfregar das pontas de dedos, quase as unhas, logo a sede de sol subiu-lhe pelas coxas, pelo sexo, veio para o rosto imediatamente, como se pulasse a barriga, o peito, as costas, sentiu apenas um correr de energia pela coluna, um fluxo de forças ascendentes que borbulharam no rosto, na pele do rosto, aquela sede de sol, começou a inquietar-se, saiu da mesa, empurrou o teclado para o lado, foi até à janela, as sombras tomavam todas as ruas, queria ver o mar, não via, sombras, apenas sombras, muitas sombras alargadas entre os prédios, um vento sul atravessando os vãos entre eles, olhou o relógio, era quase hora de ir, uns quinze minutos e poderia sair, foi ao banheiro, a sede de sol tinha descido para os músculos, apertou-se nas batatas das pernas, nos músculos do peito, doíam de sede, inquietou-se, pensou que poderia morrer daquela sede de sol, começou a apavorar-se, uma doença estranha e repentina tinha lhe vindo, assim, no auge dos anos e da saúde, e das forças, e do vigor, lavou o rosto e a sede de sol já se aninhava nas vísceras, na barriga, correu para a copa, tomou um grande copo d’água, de nada adiantou, sentiu ânsias de vômito, não era sede de água, era de sol, tinha que sair imediatamente, correr para alguma nesga de sol antes que

25 dezembro 2010

Olhar para o céu em certos momentos não é nada mais que seguir por um desvio sem importância, um acaso sem romantismo, pensava. Nada de olhar para o céu buscando entendimentos de mistérios, estrelas cadentes. Olhar para o céu pode ser simplesmente uma necessidade de movimentar o pescoço. Ele olhou para cima quando fechava o portão e viu um pássaro, assim um pouco maior que uma pomba, que se ia, num voo macio, mas... Houve ali, ele sentiu, um momento de dor, lancinante. Uma dor que provinha de além do que ele vivia e do voo que o pássaro fazia. A noite é que doía, sim, quem sabe assim num momento apenas, rápido, fugaz. Ou talvez fosse o dia que se enterrava sabe se lá onde, na encosta de uma montanha distante, triste. Merda! Doía nele uma outra coisa que não a dor. Merda! Por que foi ver aquele pássaro? Aquele pássaro na noite, aquele pássaro tão alto, aquele pássaro solitário, aquele pássaro sem rumo. Assim, sem mais nem menos, cansado, depois de um longo dia de trabalho, ao ver o pássaro, vinha-lhe a vida. Ah, vida boa mesmo é aquela que se vive como numa festa quando não se sente que se vive. A chave caiu-lhe da mão, no canteiro do pequeno e feio jardim, ocupado que estava em trancar o portão. Abaixou-se para apanhá-la, foi tateando entre as folhagens dos lírios da paz sem nenhum lírio.

22 dezembro 2010

Atravessar de um lado para o outro por sobre ferros e futuros sonhos de vida feliz, um apartamento, aumentava-lhe os pensamentos. O mundo ao redor era bonito, lá longe, enquanto paisagem. O prédio anida era só um monte. Um monte de coisas e de suor e de pensamentos. Quem sabe as almas de quem morar nele façam dele outra coisa além de um monte. De nada valiam tantos pensamentos senão para construir palavras de ar, essas que não se falam. Palavras que se falam ganham força de sabão, de soda. Não sabia se isso era verdade. Ali seria um apartamento com vistas para o mar e o porto. Mas ainda era somente um monte de coisas. Aqui o quarto, ali a sala, sabia ao imaginar o espaço já dividido lá nos primeiros andares. O uniforme era verde e o capacete azul. De que valia reparar as cores. Via um colega seu, uma máquina de trabalhar, um espelho, as mesmas roupas, os mesmos gestos, talvez pensamentos parecidos. O céu azul azul se perdia, fugia de sua cabeça, mesmo que estivesse já na altura do décimo quinto andar, por ai. Mas o que lhe vinha à mente agora era uma frase desconexa, uma conversa que teve no bar com seu amigo que lhe devia um dinheiro. O sujeito sempre se desdobrava em promessas de que pagaria a dívida, mas nunca pagava. Subiu-lhe uma raiva e uma vontade de se mandar daquela obra. Continuou executando sua tarefa, nem via o que fazia, mas fazia e fazia bem feito, com agilidade. Se bem que não era muito dinheiro, quinze reais, mas rapaz, não dá pra deixar para lá.

09 setembro 2010

Aconselharam-no a ficar mais em casa, dar mais tempo à esposa, aos filhos. A casa contudo dava-lhe infelicidades inexplicáveis. Sentia um volume na boca do estômago, uma acelerada necessidade de tomar café, beber água sem sede. Controlava-se, mas vencia-se no sacrifício, na dor. Talvez não tivesse natureza para casamento, para família. Sentava-se diante da TV e nada; brincava com as crianças e nada; cuidava do carro, nada; remodelava o jardim, nada. Nada dava-lhe a sensação de bem estar, descanso,  prazer de viver, satisfação. Não era agressivo, não brigava com as crianças, mas sonhava com a hora de ir à padaria, ao supermercado, ou coisas do tipo. Bom era ir para o trabalho no porto, estar em contato com o mar, os navios, a maresia, os guindastes. Ja cumpria com o dever de estar com a família nos dias de folga há um bom tempo, mas não encontrava-se consigo mesmo naquela casa. Um dia, ao amanhecer, encontrou um bilhete deixado pela esposa sobre a mesa do café. Era domingo, o sol tingia o céu de um azul de enlouquecer. Estava escrito, não aguento mais esta vida, vou embora. Logo pretendo voltar para buscar as crianças, enquanto isto cuide delas. Com amor, L D.

21 agosto 2010

O ônibus seguia devagar pela Reta da Penha no fim do dia. A tristeza do entardecer, era agosto, se enlaçava com o chuvisco frio soprado pelo vento sul. Seguia sentado e encolhido com a mochila no colo e um livro na mão, que não lia. Sua professora da época da alfabetização estava ali no ônibus também. Deu-se com ela de repente, ali bem perto, no outro lado do corredor. Corou-se de vergonha e encolheu-se ainda mais sob a mochila, encobriu-se com o livro. Passou a mão esquerda sobre o rosto e as espinhas e a barba esparsa, de dias, tinham tramado um incêndio ali. Ao parar no próximo ponto, aquele perto da igreja de Santa Rita, o ônibus deu-lhe a oportunidade. Rápido alcançou a porta e saltou.

17 agosto 2010

Você não precisa voltar, disse o dono da loja de ferragens, aproveite o restante da tarde do jeito que achar melhor. Quando saiu do consultório do dentista sentia-se feliz. Aproveitar a tarde, dizia contente para si mesmo. Saiu andando pela Nossa Senhora dos Navegantes, sorrindo de modo estranho, efeito da anestesia, encobrindo o sorriso com a mão para que outros não percebessem a boca torta. Era terça feira. Passou pelo ponto de ônibus e seguiu, foi na direção do pier, andou até o final, abriu os braços em cruz pra vazar o vento, ficou ali uns minutos e voltou. Sentou-se num banco ao lado do pier e pôs-se a olhar o mar. Passava um navio conduzido pelo rebocador. Bem poderia ir para casa e dormir, descansar, ver TV. Não, a casa era um quarto e banheiro. Ficava deprimido em casa. Queria ir para casa, precisava ir, lavar a roupa acumulada, dar um jeito naquela bagunça, mas preferia ficar. Veio um sujeito e sentou-se ao seu lado.

07 agosto 2010

A noite se instalara, uma sombra de vento frio soprava na janela  do prédio fazia já uma boa hora. Um leve assovio se produzia ali. Não sentia vontade senão de ficar olhando para aquela cena congelada de um filme na tela do computador. Abriu a carteira e contou as notas sem tirá-las do lugar. Voltou para a imagem congelada. Uma montanhas amarronzadas e suaves se antecipavam aos caminhos distantes do azul, do cinza das outras montanhas bem mais altas. Depois delas o horizonte. Abriu de novo o e-mail e demorou-se ali. Voltou para a cena do filme, as montanhas. Passara de muito a hora de voltar para casa. A mãe sozinha o esperava com cuidados que não lhe animavam nem lhe incomodavam. Chegaria tarde e ela o estaria esperando. Sentia que devia tomar uma decisão, descongelar o filme, se ir... e escolher o caminho da rodoviária ou o caminho de casa.